E chega um dia em que a gente se pega apaixonado. Mais apaixonado do que nunca. Mais do que aquele menino gracinha do pré-primário, de cabelos cacheadinhos e olhos curiosos, inquietos, trapaceiros, de cigano oblíquo e dissimulado. Mais do que pelo Tobias, aquele cachorrinho feio, mas extremamente companheiro e dócil,que morreu quando a gente tinha uns oito ou nove anos e deixou no ar um luto que parecia que ia durar uma vida inteira. Mais do que pelas tardes de bolinho de chuva e chocolate quente na casa das amigas na época do ginásio, quando a gente largava os cadernos no sofá da sala e não queria sair do quarto nem com ameaça de bomba. Mais do que pelo oitavoanista jogador de basquete, que era o amor de onze entre dez meninas quando a gente tava na quinta série.
Chega o dia, enfim, em que a gente se
apaixona de verdade. E que a gente percebe que é amor. Com direito a
cafuné antes de dormir, beijo apaixonado logo depois de acordar e sentir
saudade antes mesmo de ir embora. Com direito a um peito com encaixe
perfeito para a nossa cabeça, um companheiro para os nem tão legais
almoços de família e uma química que faz um beijo arrepiar até o pelo da
canela. Tudo muito bem, tudo muito bom, tudo delícia cremosa. Até que,
diante de tanta paz e de uma felicidade que beira o êxtase, uma
armadilha fica iminente: a armadilha da possessão. Do “ele é só meu”. Do
“ela nasceu pra mim”. Do “independente do que aconteça”. Do “para
sempre”. Do “amor eterno”.
Hollywood, Manoel Carlos, os romances
clássicos, a burrice e companhia limitada criaram na nossa cabeça um
universo de fantasia onde ter um final feliz é o destino obrigatório de
todo e qualquer ser humano ~do bem~, que paga suas contas, seus impostos
e que faz carinho nos cachorrinhos de rua. E que ter um final feliz,
por sua vez, está intimamente atrelado a ter alguém pra amar – que é,
inclusive pra mim, a mais genuína e gratificante forma de felicidade,
mas que, convenhamos, está longe de ser a única. E que se deus escreveu
por aquelas famigeradas linhas tortas, não há o que tire ele de você.
Nem incidentes, nem acidentes, nem o Papa. Nem a sua displicência ao
conduzir uma relação. Nem o seu ciúme sufocante e doentio. Nem a sua
falta de carinho. Afinal, ele é o homem da sua vida. Nasceu assim:
etiquetado com o seu nome, como os cadernos da segunda série. Como uma
propriedade sua.
E é aí que soa o alarme em toda e
qualquer pessoa com o mínimo de noção da vida e de amor-próprio. A gente
nasce, cresce e morre com livre arbítrio e não é (ou não deveria ser)
propriedade de absolutamente ninguém. Todo mundo, quer esteja solteiro,
ficando, namorando ou casado, tem o direito de ir e vir. E ficar é uma
decisão que a gente toma todos os dias. Quando acorda sorrindo – ou
chorando de emoção. Quando almoça com fome e sem preocupações – ou com a
preocupação de fazer com que cada detalhe daquela viagem planejada com
carinho dê certo. Quando deita na cama e dorme tranquilamente – ou troca
o sono por uma boa noite de sexo ou aquelas conversas sobre a vida que
se estendem até o sol raiar.
Porque construir um amor de verdade é
como dar um laço. E laço é diferente de nó. Laço precisa de cuidado.
Precisa de alguém pra aparar as pontas, pra cortar os fiapos, pra firmar
o tecido. Precisa de companheirismo, de compreensão, de sinceridade. E
no final de tudo, é bonito. Simples, mas bonito. Diferente do nó, aquele
amarrão forte que a gente dá uma vez só que é pra prender de vez e não
encher o saco. Não exigir preocupação. Não soltar, por mais que machuque
os dedos e arrebente a linha.
Sem dúvida, é infinitamente mais fácil
dar um nó. Mas eu prefiro cuidar do meu laço. Afinal, como já dizia
vovó, contrariando a sabedoria duvidosa do Waze, nem sempre o melhor
caminho é o mais curto.
Fonte: Casal Sem Vergonha
Fonte: Casal Sem Vergonha
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